Saturday, June 21, 2008

um dia louco...

AVISO: A experiência pessoal que relato neste post não tem a pretensão de ter qualquer validade cientifica. Eu fui o único sujeito nas referidas condições, não foi tentada a reprodução da situação nem foram feitos testes especifícos para avaliar as minhas capacidades de localização espacial, aquidade auditiva/musical ou outros durante o mesmo. As minhas experiências e eventuais explicações são, portanto, subjectivas, até porque a motivação para esta iniciativa foi curiosidade pessoal.

Continuo a ler avidamente o Musicophilia, do Oliver Sacks. Cada capítulo adiciona peças quer ao puzzle neuropsicológico da mente humana, quer ao do próprio universo (se é que os podemos dissociar). Sinto-me mesmo como um miúdo numa loja de chocolates (se alguém já me acompanhou a uma verdadeira loja de chocolates, sabe que me sinto como eu próprio...), constantemente a receber pequenas luzes que iluminam uma ideia perdida nalgum sitio obscuro da minha memória, de quando li sobre ela ou assisti a qualquer evento. E passa a fazer mais sentido.

Ou então dá-me ideias... Alguns sabem que me sinto fascinado pela sinestesia. Este fenómeno é muito mais normal do que possamos pensar. Há séculos que a sinestesia estimula e alimenta a criatividade e apoia capacidades lógico matemáticas. Eu próprio tenho uma muito leve sinestesia. Os dias da semana têm, para mim, uma forma e textura que eu não lhes atribuí conscientemente. Um dia descrevo-os ;) Na minha mente a semana aparece expontaneamente como uma sucessão de figuras, tornando-me muito fácil a gestão dos meus compromissos. Reitero que é muito ténue, mas claramente presente.

Mas fiquei seduzido por um outro tipo de sinestesia. Há pessoas como Michael Torke, caracterizado por Oliver Sacks, que vêm os acordes com cores claras e distintas. Aos cinco anos, quando lhe foi oferecido um pequeno piano, ele começou a compor música como quem pinta um quadro. Dotado também de ouvido absoluto, foi uma revelação descobrir que ele era o único que achava uma música em Ré maior azul. Outros há que têm associações sinestésicas entre melodias e cores. Mas em todos os casos, estas associações surgem expontânemente sem qualquer esforço ou pensamento consciente.

No meio de tudo isto, este tipo de associações sinestésicas parece ser mais comum entre cegos. Uma explicação hipotética seria a de que os estímulos externos no cortex visual, na zona occipital, inibem as ligações cruzadas com o cortex auditivo, responsáveis pelos efeitos sinestésicos. Isto ainda não foi comprovado, e concerteza será necessário uma inibição prolongada desses estímulos para que esses efeitos surjam, caso se verifique correcta tal hipótese. Mas isto não me impediu de decidir passar um dia inteiro vendado, expondo-me à maior diversidade harmónica, sonora, musical que me fosse possível.

Claro que tive outras motivações. Lembrei-me de um artigo que me intrigou há mais de um ano, segundo o qual a inibição de estímulos visuais durante apenas 90 minutos melhora significativamente a nossa capacidade de localização espacial. Além disso, todos nós (e proporcionalmente à nossa musicalidade pessoal) já sentimos como uma certa música se intensifica e reverbera mais profundamente em nós quando fechamos os olhos, deixando-nos levar por ela para o seu mundo.

Por isso, procurei libertar um dia de compromissos ou responsabilidades. Na noite anterior dediquei-me a observar onde estava a minha comida, remover obstáculos do meu quarto e preparar uma bilbioteca de música no meu Mac digna do dia que se iria seguir. Quando dei por mim, já tinha mais de 6 dias de música à minha disposição. Usei o pequeno controle remoto do Mac para controlar o iTunes, e a síntese de voz do sistema para saber as horas ao longo do dia. À hora de dormir fechei a persiana do meu quarto e vendei os olhos (obrigado, Mariana, por me cederes a venda usada neste meu dia louco).

Sexta feira louca
Acordei cedo. No entanto, decidi esperar que os meus colegas de casa saissem antes de me meter às apalpadelas na cozinha. Aproveitei para ter um momento de reflexão pessoal e estar atento aos sons à minha volta. Assim que fiquei sozinho em casa, fui até à cozinha. Fechei tanto quanto pude as persianas. Já estava acordado à mais de uma hora, e a inibição de estímulos ao cortex visual parecia estar a ter efeitos. Comecei a sentir-me desorientado, e com a cabeça leve. Não era fome, conheço essa sensação. Seja como for, continuei a fazer a minha vida normal, e passado menos de uma hora comecei a sentir uma noção mais apurada do espaço que me rodeava.

Não tive dificuldades em preparar o meu pequeno almoço, e até achei uma experiência divertida. Depois, o banho em escuridão total. O quarto de banho é o único compartimento onde pude tirar a venda e ainda estar em escuridão total. É uma sensação mista a que daí advém. Um pouco claustrofóbica por instantes, se bem que noutros seja libertadora. Senti claramente que o cérebro estava a ter dificuldades em fazer sentido daquilo. A própiocepção tornou-se intensa e hiper-realista, e as sensações tácteis e auditivas ganharam vivacidade, incluindo a música que soava vinda do meu quarto, através das paredes. 

Depois do banho voltei a colocar a venda e fui para o meu quarto. Quando lá cheguei comecei a sentir tonturas e a música começou a perturbar-me claramente, tornando-se bastante desagradável. Decidi parar a música e deitei-me a dormitar uns 15 minutos. Bastou para voltar a sentir-me bem e me sentir novamente àvido de música. Infelizmente não tive a perspicácia de preparar actividades manuais, tácteis, para ocupar o meu dia. Tive de me contentar com explorar o mundo que se me mostrava como nunca antes e fazer exercícios, sobretudo de elasticidade, que fomentaram a consciencialização do meu próprio corpo. Notei que, à medida que o tempo foi passando, senti a necessidade de ir reduzindo o volume da música para a apreciar confortávelmente.

O resto do dia foi passado nestas actividades, intercaladas com sessões em que simplesmente me entreguei à música, e algum ocasional podcast da radiolab. Houve músicas que pareceram mexer comigo de forma inusualmente intensa. São músicas que estão associadas a outros eventos, e que naquele momento pareci reviver. Em particular, refiro apenas Debussy. Se bem que é dificil encontrar quem não aprecie o seu Clair de Lune, outras obras dele, como La Mer, eram-me difíceis há algum tempo atrás, não mais de dois anos. Eram aqueles acordes... simplesmente eram-me desconfortáveis. Digo "eram" porque quando, há bem pouco tempo, decidi voltar a ouvir esse CD, senti que essa música me compreendia, e o universo para onde me transportou soube como meu. Sobre isto, quem sabe mais noutra altura. De facto, neste meu dia louco foi uma experiência intensa ouvir Debussy, que daria só por si valor ao dia.

Tive ainda toda uma série de pequenas experiências, que concerteza me afluirão à memória ao longo das minhas conversas dentro e fora deste blog.

Hoje...
Acordei. Tirei a venda. E passado escassos minutos comecei a sofrer de um efeito secundário que deveria ter previsto. Comecei a sentir enjoos, que felizmente se começam a tornar mais leves. Imagino que seja um efeito de jet lag. O nosso relógio biológico principal é acertado através da luz que entra nas nossas retinas. Por mais de 24h neguei tal estímulo, o que parece ter resultado num mau estar, à medida que o meu sistema se recalibra.

Enfim, pequeno preço a pagar... e não, não tive nenhum surto repentino de sinestesia...

3 comments:

Pedro Torres said...

"Muitas vezes, é na ausência que nos sentimos plenos."
:)

MissGarfield said...

ou seja basicamente passaste um dia inteiro a ouvir musica? :)

nao deixa de ser interessante a experiencia, tentadora de experimentar...

quantum said...

Aqui que ninguém nos ouve, frequentemente ainda tomo banho em escuridão completa ao som de alguma música com acordes dissonantes...

Recomendo!

;)